Quando nasci, disseram-me, não se via a parte branca dos meus olhos. A Esclerótica. Duas bolas pretas grandes davam conta do recado. Tranquila e branquinha não me mexia muito e dormia de bracinhos para cima como qualquer bebé que se preze. Comia bastante, mas era magrinha. Tinha as mãos e os pés grandes.
A primeira palavra foi "papa" e anos depois numa lógica inventada por mim, dizia golfo (o pai do golfinho), gala (a mãe da galinha) e pavor ("ó mãe a casa-de-banho está cheia de pavor"). Era a mascote do meu irmão, gostava de passear comigo e era muito querido para mim. Eu era muito má para ele. Não gostava que as pessoas me agarrassem, podiam estar e falar comigo, mas não havia colo para quase ninguém. Só a minha mãe tinha esse privilégio. A minha professora da primária cheirava a massa, tinha os dedos gordinhos e eu adorava os "certos" dela. Ninguém conseguia fazer um "certo" tão perfeito como o dela. E eu admirava-a por isso. Dizia que eu estava sempre a pensar na morte da bezerra. O que me fazia ficar ainda mais tempo a olhar lá para fora, pela janela da sala de aula a pensar porque raio haveria eu de estar a pensar na morte de uma bezerra.
Estes anos todos depois - para mim já são muitos - já se vê a parte branca dos meus olhos e sou tranquila a dormir (ainda de braços ao lado da cara). Gosto muito de comer e de cozinhar também, mas já não consigo a proeza de ficar assim tão magrinha na mesma. As mãos não são pequeninas e os pés não são assim tão grandes. Agora já sei que o golfinho não tem pai e a gala não existe. Tenho pavor de algumas coisas, mas sei que não é só na casa de banho. O meu irmão ainda é muito querido para mim, mas eu agora também sou para ele. Já não vejo a minha professora da primária há alguns anos por isso não sei se continua a cheirar a massa. Mas se ela me visse hoje em dia, continuaria a dizer que penso muito na morte da bezerra.
E afinal acredita ser possivel as pessoas mudarem?
ResponderEliminareu ou ela?
ResponderEliminarPermita-me responder na mesma. Acredito que as pessoas se vão adaptando, sim. Mas sempre e só quando se gosta muito, do quer que seja, pessoa ou não.
ResponderEliminarEu já sei que o golfinho não tem pai, mas continuo a olhar pela janela. Mesmo sem a ingenuidade de outros tempos, existe sempre o desejo que as coisas melhorem.
Espero ter respondido.
na realidade não me respondeu, quando diz que as pessoas se adaptam, essa adaptação resulta sempre de uma externalidade, então a mudança nunca se opera, já que a mudança é um elemento interno, e nunca se muda em função de um referencial externo, mas sempre interno, caso contrário poderá ser tudo menos mudança.
ResponderEliminarAssim sendo em que é que ficamos?
Está-me a dizer portanto que uma mudança interna resulta sempre de uma descoberta interna sem qualquer influência externa. Uma mudança sendo pessoal, e não climatérica, só poderá ocorrer internamente, parece-me correcto. Mas se partir uma perna num poste, a dor que sente é sua e só sua, não se preocupe :) E o poste continua lá, externo.
ResponderEliminarPodemos considerar o poste, tal como uma pessoa, um trigger para alguma coisa. Se não houver qualquer referência ou desejo à priori na tal pessoa, de facto a mudança não acontece, é bluff.
Assim, acha que ficamos bem?
Minha querida Jessica, eu nunca disse que não havia influências externas. Compreendo o seu argumento, sem duvida que existem catalizadores de mudança, que podem passar por elementos externos, no entanto o processo de mudança é absolutamente interno, quando se trata efectivamente de mudança.
ResponderEliminarAceito o seu argumento, ficamos bem seguramente, mas esta temática dava pano para mangas.
point taken.
Estamos de acordo que o processo de mudança é absolutamente interno e que o tema tem pano para mangas :)
ResponderEliminarperdi-me.
ResponderEliminarachava que se falavam aqui de coisas inocentes, como professoras primárias a cheirar a massa e pensar na morte da bezerra.
a minha dizia-me o mesmo, mas dava-me um carolo a seguir.
aprendi. já não levo carolos de ninguém, mas continuo a pensar na morte da bezerra.
cute.
Tenho de treinar essa parte de disfarçar melhor a morte da bezerra. Pensar nela, quero dizer. Ainda não me escapo dos carolos :/
ResponderEliminarA bezerra tem dessas coisas, às vezes o Norte fica um bocadinho turvo.
Claro que se fala de coisas inocentes :) A gala faz cócórócó e o golfo é fofinho. Macio, macio.
Agora também escreves sobre a morte da bezerra :)
ResponderEliminarE dava-te um certo perfeito.
Scarlet, chamas-te Margarida no mundo real e és a minha professora da primária? Ainda cheiras a massa? :)
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